sábado, 6 de novembro de 2010
Viver e ser estrangeiro _ imprecisões
Albert Camus _ "O estrangeiro"
Resenha de Eliane Accioly
Edição Livros do Brasil - Lisboa.
Introdução de Jean-Paul SartreTradução de Rogério fernandes
Sem a data
Li "O Estrangeiro", de Albert Camus, da Edição Livros do Brasil/Lisboa. Tradução do Francês para o Português de Portugal. Segundo Sartre, que nesta edição tem a introdução, "foi considerado como o melhor livro desde o armistício". Ou seja, foi lançado logo após a Segunda Guerra, e fez um considerável sucesso, tornando-se um clássico da literatura. Diria eu, um dos melhores livros que cairam em minhas mãos.
A trama se passa em Argel, capital da Argélia. O narrador é Meursault, homem jovem e sem idade precisa, que vivia seu cotidiano trabalhando durante a semana entre colegas e rotinas, almoços, risadas, e uma observação acurada dos acontecimentos e das pessoas ao seu redor. Nos fins de semana fazia amor com uma mulher a quem desejava, mas não sabia se amava. Uma profunda relação com o mar e o sol, mas não parecia se ligar com sua vida. Nas situações apresentadas, tanto se lhe fazia. Era imune às expectativas dos outros acerca dele. Escapava da moralidade humana, apenas tangenciava o bom e o mau, sem se importar ou parar para refletir. O narrador/personagem em torno do qual a trama se desenrola, de fato um estrangeiro. No namoro, trabalho, no qual se aplicava sem se ligar, amizades, escolhas _ um jeito de ser errático. Respondia: "Tanto se me dá".
O livro começa com um telegrama avisando Meursault da morte de sua mãe, e do enterro. E sem que o leitor se dê conta, a trama se desenvolve no eixo de sua relação com a mãe _ Por que a colocou num asilo? Por que não sofreu manifestamente com a morte da mãe? As pessoas se indagavam, indagações que não eram as de Meursault.
Quando vem a cometer um assassinato, a engrenagem da justiça _ advogados, juizes, promotores _ vincula o assassinato, disparatadamente, ao que lhes parecia falta de amor filial. Concluiram em conjunto pela perversidade e falta de humanidade do personagem. Somado a isto, Meursault não acreditava em Deus, dizia o que pensava, sem criar efeitos. Na situação de reu ão se defendia com palavras ou racicínios, usava as palavras para exprimir o que considerava verdadeiro.
Meursault é arguto e percebe sutilezas como a relação de amor e ódio de um homem com seu cão,
ou as relações ambíguas entre Raimundo, uma namorada árabe e os parentes desta mulher. O fantástico no personagem é que ele não emite juizos ou julgamentos. Sartre chama isto de "absurdo". A sensação do leitor é realmente de absurdo, tanto estamos acostumados a julgar, avaliar, pesar. E a viver em um mundo que vive de juízos e julgamentos. Diz Sartre: "O que é (...) o absurdo como estado de fato, como dado original? Nada menos que a relação do homem com o mundo". (pg 6)
O ser humano vive entre o dito e o não dito, "entre suas aspirações à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direção ao eterno (o sagrado) e o carater finito de sua existência, entre a preocupação que é sua própria essência e a inutilidade de seus esforços". (idem) O lugar do ser humano é aquele dos intervalos.
Meursault vivia sua vida, embora lhe fosse indiferente trabalhar em Argel ou em Paris, casar-se com Maria, ou uma outra mulher, embora provavelmente se casasse com Maria, pois era ela que estava com ele. Quando é preso, tem a consciência de que se um homem viver apenas um dia, poderá morrer.
Mas não é bem assim que se passa com Meursault, que se vê entre desejar viver, desejar Maria, e retomar a vida da qual nem parecia se dar tanta conta, retomar o mar e o sol.
No lugar de sair para a vida, o que não seria possível por estar prisioneiro, no fundo de sua consciência que vem despertando na prisão, prefere estar no lugar onde "caiu", do que estar do lado de lá, do lado de fora da cadeia, onde homens supostamente livres julgam e condenam outros homens à morte.
Por não ter certezas espanta-se muito com as certezas dos homens, e se pergunta como podem se confundir e criar realidades absurdas que os retiram da vida, e os fazem mortos em vida, além de se sentirem no direito sobre a vida e a morte de outros. Não pode compreender a diferença entre os que "matam" e os que "são mortos". Não queria matar _ e matou quem nada tinha a ver com ele.
No caso do crime que cometeu poderia ter sido alegada a legítima defesa. O personagem era alienado, antes de ter sido preso. Como se o crime cometido, e mais do que seu ato, as consequências do mesmo, o acordassem.
Mais do que por ter matado um homem, de uma maneira completamente estapafúrdia, no entanto, foi morto por ter sido julgado pelos seus supostos sentimentos, ou a suposta ausência desses, em relação à morte da mãe.
Acredito que temos muito a aprender com Meursault e Camus. Aprender a ser estrageiro, para escapar à perversão das certezas estabelecidas. Ser estrangeiro de certa forma pede consciência. Como estrangeiros frequentaremos os intervalos, o entre _ o único lugar que nos cabe neste latifundio que chamamos vida.
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