Foto de arquivo pessoal _ Espanha, Cuenca
I - 1321 A.C.
No princípio, amanheci deserto.
III - Terceiro Milênio
Atravessamos o mar, conheci meu marido, tivemos filhos. Agora, avó, em meus sonhos, permaneço jovem e loira. Neles visto leves e transparentes véus, cavalgo camelos enluarados, quando, os cheiros, sons, e ritmos vivos, torneados e sacrílegos me possuem, em tempos e verbos de língua brasileira.
I - 1321 A.C.
No princípio, amanheci deserto.
Um homem _
metade sol, metade lua _ escalando dunas, descobriu-me os seios. Oculto no
remanso de um abraço infindo fecundou-me. Ao conceber os gêmeos renasci oásis,
uádi, poço, palmas, tamareiras.
Desde então,
os frutos que de mim brotam alimentam pássaros, camelos, cabras, cobras,
lagartos, as caravanas dos tuaregues, a luz e as sombras do meu homem. E os
meninos: o Negro e o Dourado.
II - 1950 A.D.
A cama de
espaldar alto e dossel de filó não protegia meu sono de menina das areias, do
calor, da comida, da língua e musica árabe, ou dos murmúrios do Nilo, que,
renegados pela cultura de minha gente, apesar de vivermos no Cairo, entravam
sorrateiros e caudalosos pelas conversas proibidas nas sombras da cozinha.
As tias, avós,
primas mocinhas, minha bela mãe, vestidas de sedas e rendas de Chantilly, preenchiam
salas luminosas de risos e vozes musicais. Os homens desmanchavam-se na fumaça
dos charutos, embriagados com a promessa dos lucros nos negócios. As crianças
corriam por varandas, caramanchões, jardins. Vivíamos nas bordas do Sahara, e
falávamos o francês.
III - Terceiro Milênio
Atravessamos o mar, conheci meu marido, tivemos filhos. Agora, avó, em meus sonhos, permaneço jovem e loira. Neles visto leves e transparentes véus, cavalgo camelos enluarados, quando, os cheiros, sons, e ritmos vivos, torneados e sacrílegos me possuem, em tempos e verbos de língua brasileira.