sábado, 23 de junho de 2012

Resenha de Edimilson de A.PEREIRA, de "Poemas na Arena"




“Poemas à flor da pele: a poesia de Eliane Accioly Fonseca”.  In: Corrente. Pirapora, Ano XXII, No 959, 01 de novembro de 2002, p. 6, de Edimilson de A.PEREIRA


       A leitura de Poemas na arena é um convite à luta, sem intervalos. Luta que – embora evidencie amazonas e cavaleiros como contendores – se estende para ser uma tomada de atitude do ser humano contra todas as iniqüidades. A presença de uma voz que se assume como a voz da mulher exprime, por um lado, a justa reivindicação de quem se viu historica-mente espoliada de seus direitos; por outro, o desafio para compreendermos nesse fio específico a análise das tensões que dizem respeito a todos nós.
       Para navegar nessas duas margens, simultaneamente, Eliane Accioly assume a palavra como seu meio de trabalho e a persona de poeta como sua identidade: "poeta/extraio lucidez/da loucura // e do bruto/loucura liquefeita/ translúcida" (Instantes). Essas escolhas, antes de serem amarras que a limitam a dois campos da realidade, se convertem em agentes legitimadores de sua ação criadora. Por isso, quando nos dá ver a sua criação, Eliane Accioly nos apresenta a si mesma, agora multiplicada através da persona do poeta.
       Assim, a poeta entra na arena e seu embate com a palavra, embora difícil, não anula a possibilidade dos frutos pois, afinal, "palavras pulsam" e "cunham fados" – estão vivas para quem vive ("encarno o tempo/ e os enxames// quando respiro"). A partir desse reconhecimento é necessário acrescentar outro, central para que se possa tocar o cerne dos poemas. A poeta emprega a colméia – isto é, seus agentes (abelha rainha, operárias, zangões) e as relações (de hierarquia, trabalho, sexualidade, violência) que estabelecem entre si – como metáfora para falar dos agentes humanos e de suas relações. Em vista disso, pode-se dizer que os temas se apresentam aparentemente restritos ao confronto feminino/masculino, mas intrinsicamente vinculados às indagações de todos os seres humanos; aparentemente tecidos em torno de uma poética da natureza, mas profundamente mergulhados na psicologia humana.
       É, portanto, sob o signo da multiplicidade da palavra e das metáforas que nos deparamos com a recuperação do mito para expressar as experiências do sujeito contemporâneo, como em Coro de Sibilas: "oh enxame de Dionísio,/o vosso gozo não conta". Nesse caso, a mitilogia funciona como suporte para a veiculação de um discurso amoroso tenso, atravessado pelo lirismo e pela violência. Tangenciando, para diferenciar-se, da síntese camoniana em que platonicamente "Transforma-se o amador na cousa amada", Eliane Accioly nos dá conta de que o amar é perder-se exatamente porque decorre de uma realidade concreta, marcada por confrontos: ":a flecha deixa seu arco/ fere o alvo, se oferta".
   O amor, por sua vez, desce à arena onde "os personagens/apresentam-se/na flor da carne" (Teatro) e, diante da nudez humana, se revela múltiplo: como desejo ("amor, cio/andrógino", Platônico); como transformação do ser e do corpo ("a cópula/ delimita o par: recorte cósmico", Metamorfose); e, sobretudo como luta ("chegam os cavaleiros /…/ sob o vermelho cruel/ de um céu que não os protege/ nos jogos nupciais", Consortes). Apesar do confronto, é no confronto mesmo que o amor se realiza ("o sexo da rainha,/caverna templo/ câmara matrimonial// arena// de um encontro indissolúvel entre a fêmea e o macho", Primórdios).
       Dentre outros temas abordados sob a ótica anterior, é interessante realçar: a politização do texto mediante o emprego da metáfora da colméia, ou seja, para se contrapor ao discurso masculino dominante a poeta encarna a potência da mulher abelha e afirma: "nua refém/ paramentos de apicultor/ não me acodem", Uma mulher abelha); a desconstrução da imagem romântica da mulher a partir de sua apresentação como identidade plural ("a mulher/ abelha/ é o picadeiro", Circo; "operárias guerreiras/ amas curandeiras sibilas, em mutirão", Arquiteta; "a moça guerreira", Lenda); a erotização do discurso religioso como forma de criticar a vigilância que a religião impôs à sexulidade feminina ("o consorte// habita/consome/fertiliza/a amada// a morada/o consome", Mistério gozoso); a inversão do significado do ato de vencer através da crítica à ideologia que propaga esse fato como privilégio masculino ("oh bem amado guerreiro!/ olvide vossa vitória/ a colméia vos conquista", Coro de Sibilas).
       Mas, sob a multiplicidade da palavra e da metáfora, a poeta surpreende a permanênca do discurso patriarcal que demarcou os valores considerados suficientes para definir a mulher. Valores que transmutaram a sua capacidade geradora em prisão para ela mesma, submetendo seu desejo e sua individualidade à força das necessidades da espécie: "a guerreira abre alas/ entre fileiras vivas/transformando-se na matriz/aguardada pela aldeia// o ciclo da história se marca:/ oh guerreiro, oh soberana,/ vossas vontades não contam/ quando canta a colméia" (Lenda).
       Ao abordar os embates entre feminino e masculino, Eliane Accioly propõe uma verdadeira alquimia do verbo, pois elabora um discurso direto mas que se nutre da multiplicidade de sentidos da palavra e das metáforas. Desse modo, imagens conhecidas decorrentes da associção da mulher à natureza adquirem novas configurações. Mais do que flor e abelha, a mulher que se apresenta na arena percebe que suas atribuições englobam e ultrapassam essas associações. Ciente disso, a poeta pode dialogar com o masculino criticando-o e redescobrindo-o como interlocutor, além de descobrir-se a si mesma como sujeito que, "entre temperos e palavras", cria significativamente o seu discurso.
       Poemas na arena se orienta como um livro que instiga o leitor a entrar no círculo de conversas, seja para contestar ou partilhar a voz da poeta mas, acima de tudo, para assumir-se como parte dessa experiência humana. E este é um outro caminho que Eliane Accioly palmilha para criar um discurso perturbador, pois se na aparência é a poeta quem se desnuda, ao final nos quedamos também com essa sensação "à flor da carne". Ou seja, diante um livro de coragem, a abertura ao diálogo das mulheres entre si, dos homens entre si, bem como de mulheres e homens entre si, se insinua como uma atitude possível e necessária.

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                Edimilson de Almeida Pereira
                Genebra, 14 janeiro 2002

quarta-feira, 20 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

De finitude e infinito








Uma crônica



Neste agora ela é mais esquecimento que lembranças. Do que se lembra? Do que se esquece? A sensação regente é real, como o vento que entra pela janela aberta. É como uma notícia que chega e conta que ela se esquece de expressões e palavras de sua infância, regionais, há pouco frescas como fruta ao ponto de comer em pé de árvore, ao alcance.   O esquecimento a esvazia. O silêncio traz o oco fundo. Escorrega em paredes duras e arredondadas, e as abençoa, sentindo-se abençoada.  Não ser o que foi a desconcerta e a desconhece de si e dos outros.  Vagas nostálgicas batem nela e a arrancam da falésia onde se agarrava.  Em seu corpo nascem guelras e barbatanas. Em seus sonhos cobras deixam para trás as velhas peles, e um pardal se incendeia e renasce.  Estranha suas filhas, três mulheres desconhecidas como ela mesma, ou seja, como ela-outra.

Três vezes ao dia os ponteiros do relógio são uma linha reta tendendo ao infinito, apenas por um instante.


Percepções

segunda-feira, 4 de junho de 2012

"Poema Percebido", de Gabriel Arcanjo















Quero um poema

sem pausa

Sem ponto

Sem virgula

Que seja lido corrido

Reinvente as palavras

Sem rima

Que por mais

Que seja mal escrito

Que ele gere polêmicas

Silêncio e gritos

Mas que não seja metafísico

Que se arrisque

E que corra perigo

Um poema sem história

Que não fale do passado

Nem recorra a memória

Que seja dito

Ao pé do ouvido

Quer seja preto e branco

Ou colorido

Que seja transparente

Mas não passe despercebido

Que ateie fogo ao quarteirão

E provoque o libido

Um poema profundo

Que abra as portas do mundo

Há muito tempo fechadas

Que sacie a fome

E alivie a dor

Enfim um poema de amor

Que seja de dominío público

Como uma oração

Feita dos pais para os filhos

E dos filhos para os pais

E que ninguém saiba

De onde ele veio

E para onde ele vai

Que seja dito por camponeses

E executivos

Que suplante a guerra

E instaure a paz

E que ninguém diga

Que tanto faz